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A COMUNIDADE BABILÔNICA (aprox. 200-600 E.C.)


"Quando você educa seu filho, você educa o filho de seu filho." 
Talmud 

   
    O judaísmo nunca esteve restrito à região da Palestina. Por vários fatores, sempre houve judeus em várias partes do mundo. Quando a população era suficientemente grande e bem-articulada, se desenvolvia uma comunidade judaica formalmente organizada. Uma das nações que gestou uma comunidade importante foi a Babilônia.

    Até a época de Esdras, os judeus da Babilônia tinham progredido mais que os da Palestina. Depois disto, adormecera. Esta comunidade não tinha do que se queixar. Os diversos governos tratavam-nos bem e raramente interferiam em sua vida religiosa. Um pouco depois do declínio da comunidade da Palestina, a da Babilônia ergueu-se ao patamar de centro da vida judaica.

    A organização dos judeus era similar àquela encontrada na Palestina. Tinham um Exilarca, equivalente ao Patriarca, chefe do povo judeu reconhecido pelo governo persa (nessa época a Babilônia e seus arredores faziam parte deste grande império). O Exilarca era um descendente de David e, devido ao direito de os judeus babilônios se governarem de acordo com as leis judaicas, tinha certos poderes. Nomeava juízes, era a corte de apelação máxima, em seu nome eram realizadas as punições aos judeus e arrecadava impostos. O Exilarca era motivo de orgulho para os judeus, pois tinham um membro da linhagem de David governando-os.

    Cada comunidade judaica da Babilônia nomeava seu chefe e seus conselheiros. Estes supervisionavam as atividades comunitárias: sinagoga, mikvê, etc. Os judeus da Babilônia se interessavam mais pelo comércio do que os da Palestina, mas mesmo assim preferiam a agricultura. Hoje o solo desta região (Iraque) é considerado pouco propício para esta atividade. Na época, no entanto, era possível plantar devido a um antigo sistema de irrigação que ligava o rio Tigre ao Eufrates, permitindo o cultivo.

    Os judeus prosperaram economicamente. Com isso, puderam reunir recursos para se dedicar a um aspecto da vida judaica que consideravam muito importante: o estudo. Seguindo a perspectiva dos fariseus, de que o estudo devia servir para guiar as ações dos homens na Terra, estudaram tanto as relações do homem com Deus quanto as relações do homem com seu próximo.

    Foi, apesar das condições favoráveis, necessário um grande acontecimento para que se iniciasse o estudo das escrituras na Babilônia. Um erudito, Rav Aba Arikha, viajou para a Palestina e, ao voltar, chocou-se com a falta de instrução dos judeus do Império Persa. Trouxe consigo a idéia de que uma pessoa ignorante deveria ser desprezada. Concentrou seus esforços em instruir a população adulta, para que esta, em casa ensinasse seus filhos. Logo, a posição social de uma pessoa passou a ser medida, em maior parte, por realizações intelectuais.

    O Rav passou por um período difícil. Quando pregava na Babilônia, por volta do ano 235 E.C., houve uma mudança na dinastia reinante. Os persas, aliados aos reacionários sacerdotes zoroastristas, tomaram o poder aos partos e perseguiram os judeus. Felizmente, o segundo rei da dinastia não precisava tanto dos sacerdotes e a perseguição cessou, após um período de mais ou menos 25 anos.

    Nesta época, já havia uma academia nas cidades de Nehardea e Sura. Aba Arikha era Rosh HaIeshivah desta e Samuel daquela. Samuel estabeleceu uma regra civil muito importante, especialmente no período a partir da Haskalá. “A lei da terra é lei”. Isso significa que os judeus deveriam cumprir as leis dos países onde habitavam, mesmo que diferissem das leis que seguiriam caso fossem independentes. Esta máxima não se aplicava às leis religiosas.

    Por volta do ano 260 E.C., a Pérsia e Roma entraram em guerra¹. Esta guerra causou a destruição da academia de Nehardea, que nunca foi restaurada. Sua atividade foi, entretanto, transferida para a cidade vizinha de Pumbedita.

    Qualquer pessoa podia ser um estudante na academia, desde que dispusesse dos meios para isto. Caso não conseguisse acompanhar as discussões, talvez por não conhecer a fundo a Mishná e a Bíblia, geralmente se desencorajava. O estudo baseava-se, majoritariamente, na memória. Os alunos sentavam-se todos em uma sala e debatiam. Talvez alguns tomassem notas. O Diretor da academia conduzia o tema e, perto dele, sentavam-se os eruditos mais notáveis, que tomavam parte mais ativa na discussão.

    Uma fase importante do trabalho das academias eram os meses Kalah. Em Elul (mês que precede Rosh HaShanah) e Adar (mês que precede o Pessach), trabalhadores e lavradores iam à academia. Estas pessoas, que viviam ocupadas durante a maior parte do ano, dedicavam-se ao estudo nestes dois meses. Assim, conheciam as mais recentes interpretações e decisões da lei judaica. Estas reuniões chamavam-se Kalah.

    Perto do ano 400 E.C., percebeu-se que tantas coisas haviam sido discutidas, tantas opiniões expressas, tantas leis emitidas que era necessário pôr no papel o que valia a pena ser lembrado e o que não valia. A situação era semelhante àquela que levou Judá, o Príncipe, a compilar a Mishnah. A pessoa que fez isto foi o chefe da academia de Sura, Rav Ashi. Iniciou uma revisão sistemática da Mishnah, separando o joio do trigo. Nem todo este material era sobre leis, havia ali ética, história, lenda e outros. Rav Ashi morreu sem terminar seu trabalho, mas ele foi conduzido por seus sucessores.

    Perto da conclusão deste trabalho, em 470, houve uma mudança na cena social da Pérsia. O mazdaísmo, movimento que tendia ao radicalismo social e econômico ganhou controle sobre o zoroastrismo. Por aproximadamente 30 anos, houve perseguições e tentativas de supressão de tudo que diferisse do mazdaísmo – cristãos, persas conservadores, judeus. Como sempre, dificuldades políticas e econômicas estavam por trás disso, pois existia um mau governo e a Périsa sofria derrotas militares, além de fome. Isso gerou empobrecimento geral e também os judeus tiveram que fechar as academias e suspender os estudos. O Exilarca, um jovem, Mar Zutra, reuniu um pequeno exército judaico e estabeleceu-se como governador de um minúsculo reino independente, Esta situação durou sete anos, até que Zutra foi derrotado e executado em público.

    Quando a produção intelectual se reiniciou, perto do ano 500, uma nova geração de eruditos surgia. Não tinham estudado tanto e não conseguiam compreender tudo que havia sido produzido. Não eram mais Amoraim (explicadores) e sim Saboraim (raciocinadores). Não era fácil para eles pensar sobre esses assuntos, podiam organizar, acrescentar anotações que facilitassem a leitura ou simplificar. Isto não ocorreu com o Talmud da Palestina, que ficou mais complexo.

    Este trabalho era o Talmud da Babilônia. Devido à suspensão dos estudos por uma geração, o Talmud Babli continha discussões sobre apenas metade dos trabalhos da Mishnah.

    As discussões contempladas pelo Talmud Babli eram, principalmente, as referentes à vida na Diáspora. Isso ajudou muito mais os judeus em tempos futuros do que o Talmud compilado na Palestina.

    O Talmud Babli continha muito mais material sobre comércio do que o da Yerushalmi, outro fator que ajudou nos tempos posteriores. A combinação de maior facilidade e mais conteúdo sobre comércio e Diáspora fez com que a versão babilônica se popularizasse e fosse adotada pela maioria dos eruditos, sendo seguida até agora, enquanto a versão da Galiléia só é abordada pelos curiosos ou muito eruditos.

    Há uma relação muito grande entre aquilo que um povo faz mundanamente e aquilo que produz religiosa e intelectualmente. No caso dos judeus da Babilônia isso é flagrante. O Talmud trata mais dos agricultores que dos pecuaristas e vitivinicultores e mais destes do que dos comerciantes e destes do que os profissionais liberais. Isso não quer dizer que os comerciantes fossem desprezados, apenas que os lavradores eram mais valorizados.

    Assim, o Talmud Babilônico firmou-se como a Bíblia em ação, às vezes sendo mais consultado que esta.


    1 Roma teve ajuda do recém-fundado e rico reino de Palmira, o que fez com que ganhasse a guerra.