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VIRTUDES DA DIÁSPORA, por Eric Hobsbawn


As pesquisas no campo da história judaica, até hoje, têm se voltado com maior ênfase para os efeitos da pressão constante que o mundo exterior vem exercendo sobre o  mundo judaico, já que via de regra os judeus têm sido, nos dois últimos milênios, uma pequena minoria em meio a populações não-judias. Neste ensaio, porém, farei uma abordagem ao contrário: quero falar da influência que os judeus exerceram sobre o restante da humanidade, especialmente durante os séculos 19 e 20, quando esta influência passou a se tornar significativa como resultado do processo de emancipação judaica, que começou na Europa no fim do século 18. 

Entre a expulsão da Palestina no primeiro século da era comum e início do século 19, os judeus viveram em meio a uma sociedade mais ampla de não-judeus, cujas línguas eles adotaram, enquanto adaptavam as culinárias às suas próprias regras e rituais alimentares. Porém, antes do início da emancipação, era só em casos excepcionais que os judeus desejavam participar da vida cultural e intelectual das sociedades em meio às quais viviam. A contribuição dos judeus à vida social de um modo geral foi, portanto, limitada, até mesmo naqueles campos em que, depois da emancipação, esta contribuição passaria a tornar-se extremamente significativa. O único papel histórico significativo que os judeus exerceram no período anterior ao da emancipação foi o de mediadores entre culturas – em especial entre as culturas islâmica e cristã ocidental durante a Idade Média européia.  

Tomemos como exemplo a matemática, um dos campos em que os judeus se destacaram a partir do século 19. Que eu saiba, não há, antes do século 19, nenhuma descoberta significativa da moderna matemática associada ao nome de um judeu. Tampouco são conhecidas inovações significativas de matemáticos judeus que somente tenham sido descobertas séculos depois – como acontece com os matemáticos hindus que trabalharam entre os séculos 14 e 16 em Malayalam,  mas que eram desconhecidos no Ocidente até meados do século 20. Outro exemplo é o xadrez, um jogo desaconselhado tanto pelas autoridades religiosas de modo geral quanto por Maimônides em particular, já que ocuparia tempo que deveria ser destinado ao estudo das leis. Não surpreende, portanto, que o primeiro jogador de xadrez judeu importante, o francês Aron Alexandre (1766-1850), apareça apenas na era da Emancipação.  

A fase mais intensa desta segregação ou “guetização” dos judeus na Europa – fosse ela imposta pela sociedade mais ampla, fosse auto-imposta –, ocorreu entre os séculos 14 e 18, e seu apogeu tem início a partir de 1492,  quando os judeus não convertidos da Espanha foram expulsos. A partir desta expulsão, as possibilidades de contato social e intelectual com não-judeus ficaram  severamente limitadas, reduzindo-se à esfera estrita de algumas atividades profissionais. Efetivamente, se olharmos com maior atenção, são praticamente inexistentes os judeus deste período que tiveram qualquer tipo de intercâmbio intelectual espontâneo com não-judeus. Até meados do século 19, viviam em guetos dentro das cidades, ou eram proibidos de viver nas grandes cidades da Europa, e a única exceção a esta regra aparece na cidade de Amsterdã, que ainda contava com uma população judaica significativa, formada principalmente por sefarditas.  

Como escreveu Jacob Katz em 1973, em Out of the Ghetto (Fora do Gueto), “o mundo exterior não desempenhava um papel significativo no universo do pensamento judaico”. A codificação cuidadosamente elaborada de práticas ortodoxas – como por exemplo no Schulchan Aruch – fundamental para a religião judaica, reforçava o impulso em direção à segregação. A forma de expressão tradicional da espiritualidade judaica era a explicação, em prédicas, da Bíblia e do Talmude e sua aplicação aos problemas práticos da vida judaica, e deixava pouco espaço para outros estudos e interesses. As autoridades rabínicas proibiam a filosofia, a ciência e outros conhecimentos de origens nãojudaicas. Na obscura Volínia (região do Império Austro-Húngaro hoje pertencente à Polônia), o aprendizado de línguas estrangeiras chegou a ser proibido pelas autoridades rabínicas. O abismo que separava estes dois universos espirituais torna-se visível pelo fato  de que os poucos partidários da emancipação entre os judeus da Europa do Leste consideravam necessário traduzir para o hebraico aqueles livros básicos, acessíveis a qualquer pessoa culta no universo não-judaico – como os livros de Euclides, mas também livros de trigonometria, geografia ou antropologia.  

Segregação 

O contraste entre a situação antes e depois da era da Emancipação é espantoso. Depois de vários séculos em que a contribuição de judeus (ao menos segundo a definição ortodoxa), com a possível exceção de Maimônides, não passa de uma nota de rodapé na história cultural e intelectual da humanidade – para não falar da inexistente contribuição política – entramos, de maneira brusca, na era moderna. Subitamente, nomes de judeus começam a aparecer de maneira totalmente desproporcional, como se a tampa de uma panela de pressão tivesse sido repentinamente levantada. Mas não devemos nos deixar enganar por nomes conhecidos como os de Heinrich Heine, Felix Mendelssohn-Bartholdy, David Ricardo, Karl Marx ou Benjamin Disraeli, nem pelos ambientes florescentes dos judeus ricos e cultos numas poucas cidades como Berlim. Ainda ao fim das guerras napoleônicas, a grande maioria dos judeus asquenazitas não estava integrada nas sociedades  cristãs da Alemanha, da Holanda ou do Império Habsburgo. A única e, à época, ainda muito recente novidade era de natureza administrativa: a introdução de nomes de família, ou sobrenomes, entre os judeus. Mas mesmo as famílias da elite ainda estavam longe de sentirem-se integradas.  A mãe de Karl Marx, por exemplo, nunca se sentiu à vontade em alemão e as duas primeiras gerações dos Rothschild correspondiam-se em ídiche, escrito com letras hebraicas. Os judeus do interior centro-europeu da monarquia habsburga permaneceram totalmente alheios à emancipação até a década de 40 do século 19, quando começou a ser possível uma migração em direção às cidades. E nos shtetls (aldeias judaicas) da Galícia e da Rússia, este momento só chegou ainda muito mais tarde.                                                                                                                                                                    

         Stephen Thernstrom escreve, na Harvard Encyclopedia of American Ethnic Groups que “até mesmo século 20 adentro a maior parte dos imigrantes judeus nos Estados  Unidos se lembravam de que provinham diretamente de uma sociedade judaica tradicional”. Também a maior parte dos judeus sefarditas vivia em enclaves isolados.  Efetivamente, duvido que, antes da Revolução Francesa, possamos encontrar qualquer lugar no qual todos os judeus – e não apenas uma elite judaica – estivessem integrados à sociedade à sua volta, falando, por exemplo, entre si, a mesma língua dos seus vizinhos. As exceções a esta regra são as pequenas comunidades de  refugiados na França e na Holanda, assim como as antiqüíssimas comunidades no Norte da África e no Sul da França. 

          A emancipação judaica, portanto, não pode ser  comparada a uma fonte que subitamente começa a jorrar, mas sim a um pequeno córrego, que aos poucos se transforma num rio caudaloso. A partir da Encyclopaedia  Judaica fiz uma lista de matemáticos, físicos e químicos notáveis, segundo sua data de nascimento. Nos três grupos encontrei apenas um nascido antes de 1800; 31  nascidos na primeira metade do século 19 e 162 na segunda metade. (Uma curva análoga, porém aplicada à medicina, o único campo de atividade intelectual no qual os judeus já haviam conquistado uma posição na sociedade não-judaica, é menos drástica). Não é preciso acrescentar que falo, aqui, em primeira linha a respeito dos judeus  asquenazitas, que constituíam a maioria crescente da população judaica mundial. A tendência à urbanização também era marcada entre os asquenazitas. Assim, por exemplo, o número de judeus em Viena passou de 4.000 em 1848 para 175.000 às vésperas da 1ª Guerra Mundial.  

Alemanha, Itália, França  

         Ao mesmo tempo, não  podemos subestimar a influência dos poucos judeus ricos e cultos – como por exemplo das 405 famílias judias que viviam em Berlim no começo do século 19. A ordem  prédemocrática das sociedades liberais era favorável a grupos como estes. Assim, em virtude das restrições do direito eleitoral italiano, os judeus da Itália constituíam  10% do eleitorado, embora sua população fosse de apenas 0,1% da população total. Em 1851, a escolha de Cavour no reino da Savóia foi selada pelos votos dos judeus de Turim. Isto talvez explique, ao menos em parte, o rápido ingresso dos judeus da Europa Central e Ocidental na vida pública. Que eu saiba, os judeus não desempenharam papel significativo na Revolução Francesa, nem entre os seus simpatizantes no restante da Europa. Que o universo da burguesia holandesa seja uma exceção aqui não surpreende. Durante as rebeliões de 1830, porém, a presença judaica já se tornara visível, especialmente no sul da França. O mesmo vale para a  Alemanha e para o norte da Itália: o secretário de Mazzini e muitos de seus ativistas e financistas eram judeus. Em 1848 os judeus tiveram um papel de grande  importância. Assim, Crémieux logo se tornou ministro no novo governo revolucionário da França enquanto Daniel Manin foi o líder da revolução em Veneza. Três judeus destacaram-se na unificação da Prússia, enquanto em Viena foram os estudantes judeus que conclamaram à revolução de março, e oito das 29 assinaturas do manifesto dos escritores vienenses eram de judeus. A lista de subversivos na Polônia austríaca, de Metternich, não continha nomes judaicos. Mas poucos anos mais tarde os judeus desta região declararam abertamente seu apoio à libertação da Polônia e na facção polonesa do parlamento, em Viena, havia um rabino entre os representantes poloneses. Na Europa pré-democrática, a política – mesmo a política revolucionária – era a província de um pequeno grupo de pessoas cultas. 

 Secularização

    Para os emancipadores, duas mudanças eram vistas como inevitáveis: um certo grau de secularização e a adoção do ensino sempre na língua nacional, que também deveria ser usada no dia-a-dia. Sempre que possível, esta deveria ser, também, uma língua culta reconhecida, ou pelo menos uma língua nacional escrita (basta pensar, por exemplo, no caso dos judeus húngaros, que adotaram com tanto entusiasmo a cultura magiar). Secularização, aqui, não significa a exigência de abandono da crença judaica – ainda que muitos emancipados tivessem muita pressa em se converterem, fosse por convicção, fosse por motivos pragmáticos. Porém, a partir deste ponto, a religião deixou de ser uma moldura onipresente da vida que a abrangia em sua totalidade. Em vez disto, passou a ocupar apenas uma parte da existência, até mesmo daqueles em quem a fé era arraigada. A secularização permitiria, idealmente, um casamento ou uma relação entre parceiros judeus e não-judeus cultos, circunstância esta que desempenhou um papel importante na cultura e também na política – especialmente a de esquerda. A interdependência entre a emancipação das mulheres e a  emancipação judaica, aliás, é um tema importante.  

Restrições nas escolas

            A obrigatoriedade do ensino fundamental, sempre na língua nacional, somente se generalizou, na Europa, nas últimas três décadas do século 19. Ainda que na Alemanha  de meados do século 19 já quase não existissem mais analfabetos, a partir de 1811 tornou-se praticamente impossível para um menino judeu manter-se afastado do sistema de educação pública. Ao mesmo tempo, na Europa do Leste, a obrigatoriedade de fato que tinham os meninos judeus de aprender a língua hebraica numa  instituição religiosa rapidamente perdia força. A leste dos territórios poloneses ocupados pela Rússia e pela Polônia o cheder já não mais concorria com as instituições seculares.

            Falar, ler e escrever a mesma língua dos não-judeus cultos tornara-se condição essencial para a participação na civilização moderna, mas também o caminho mais direto para o término da segregação racial. Além disto, a paixão dos judeus emancipados pelas línguas e pelas culturas dos países em que viviam era  freqüentemente mais intensa naqueles países em que os judeus pudessem considerar-se não como ingressantes numa cultura já existente, mas como fundadores de uma nova cultura. Os judeus emanciparam-se justamente na mesma época em que surgiam, em países como a Alemanha, a Hungria e a Polônia, as literaturas clássicas destas culturas. Onde se podia estar mais perto da vanguarda da literatura alemã do início do século 19 do que no salão de Rahel Varnhagen? Assim, Theodor Fontane escreveria, a respeito de Karl Emil Franzos, um apaixonado pelo iluminismo judaico: “É só no âmbito em que ele se movimenta que podemos encontrar um interesse verdadeiro pela literatura judaica”. Assim como Jabotinsky disse, os intelectuais judeus russos haveriam de apaixonar-se, duas ou três gerações mais tarde, de maneira muito semelhante ao que ocorreu na Alemanha, “de maneira louca e vergonhosa pela cultura russa”.

             Foi só no Levante multilingüístico que a mudança de idioma teve  importância menor, pois ali não existia uma cultura lingüística nacional. Graças à Alliance Israélite Universelle, os judeus que buscavam modernizar-se ali recebiam sua educação em francês, ao mesmo tempo em que continuavam a conversar entre si em ladino (ou judeu-espanhol), em árabe ou em turco – mesmo quando não mais empregavam estas línguas em sua escrita.  

O alemão como o mais importante idioma

            Dentre as múltiplas línguas da emancipação, o alemão foi sempre a mais importante. E isto por dois motivos: em metade da Europa – de Berlim até as fronteiras do Império Russo e da Escandinávia até o Mar Adriático e os Bálcãs – o caminho do atraso para o progresso, do provincianismo para o mundo, era pavimentado pelas letras germânicas. Nós tendemos a nos esquecer deste fato. O alemão era o portal da modernidade. O conto Schiller em Barnow, que Karl Emil Franzos escreveu por ocasião do centésimo aniversário de Schiller, ilustra este fato claramente. Para a maior parte do público leitor de alemão no século 19, Schiller era a voz clássica da liberdade moral e política. Nesta história, um magro e mal impresso volume de poesias de Schiller torna-se o instrumento por meio do qual um monge dominicano leva um jovem professor de escola ucraniano e um menino judeu pobre, de um shtetl numa região que o autor pejorativamente denomina de “semi-Ásia”, a encontrarem a liberdade que a educação do século 19 e a cultura moderna tinham a oferecer. A narrativa culmina com uma leitura da Ode à Alegria. No mais obscuro Oriente, Schiller era traduzido até mesmo para o hebraico. A força emancipatória da língua alemã torna-se compreensível se pensarmos, por exemplo, que os conselheiros municipais de Brody, a cidade da Galícia com maior porcentagem de população judaica (76% de seus moradores eram judeus), fizeram questão de introduzir o alemão como língua oficial em suas escolas. No ano de 1880 eles apresentaram, com sucesso, seu pedido à corte imperial de Viena, argumentando, de maneira pouco verossímil, que o alemão era a língua corrente na Galícia.  

            Evidentemente, o alemão não era a língua corrente na Galícia. Quase todos os judeus do Leste da Europa falavam ídiche, um dialeto do alemão, e relíquia de uma antiga e então inexistente ligação entre os judeus e a sociedade mais ampla, mas que acabou por tornar-se o símbolo da separação lingüística. O mesmo ocorreria, aliás, com o espanhol dos sefarditas, a partir de 1492. Deveríamos supor que o ídiche tenha coexistido, como meio de comunicação oral, com as línguas escritas nacionais. Isto foi o que aconteceu com outros dialetos do alemão, como acontece, até hoje, por exemplo, com o suíçoalemão. Porém, no caso do ídiche a situação era outra: para estas comunidades avessas ao progresso, o ídiche criou uma barreira lingüística e ideológica entre elas e a modernidade, barreira esta que precisava ser  superada.            

            Ao falarem alemão ou polonês, ao vestirem-se com paletós como os alemães, os pioneiros da emancipação em Varsóvia distinguiam-se dos demais. Quando os filhos de imigrantes de língua ídiche entravam nas escolas alemãs, a gramática que tinham herdado da língua de seus pais os levava a tropeçarem, pois diferia da do alemão escrito. Como recémchegada ao establishment não-judaico, a maior parte dos judeus prósperos tendia a esconder os sinais visíveis ou audíveis de sua origem. 

            Assim, o abismo entre os judeus do leste, não assimilados e falantes de ídiche, e os judeus do oeste, assimilados, tornou-se intransponível, e assim ficou, até que ambos perecessem, juntos, no Holocausto.

     A primeira distinção oficial entre judeus do leste e do oeste surge na década de 1870, na Bucovina, então uma província austro-húngara, na forma de crítica à orgulhosa e bem-sucedida classe média judaica germanizada que ali vivia. Contrapondo-se a esta classe, os nacionalistas judeus desta região adotaram o ídiche. Para os judeus emancipados da Europa Central, os judeus do leste, ou Ostjuden, representavam tudo aquilo que eles não eram e não queriam ser: pessoas tão ostensivamente diferentes que pareciam pertencer a outra espécie. Lembro-me de que, quando eu era menino em Viena, ouvi o que os adultos diziam e então perguntei a uma parente mais velha: “Afinal, que nomes têm estes Ostjuden?” Minha pergunta provocou certo constrangimento, pois nossa família, os Grün e os Koritschoner, emigrara diretamente da Polônia austríaca para Viena. Assim como uma série de grandes personalidades do judaísmo alemão, como Rudolf Mosse, Heinrich Graetz, Emmanuel Lasker e Arthur Ruppin, que eram originários da Polônia prussiana.  

Migrações de massas

         A emigração em massa dos judeus do Leste da Europa, no final do século 19, teve um papel fundamental na influência judaica sobre o mundo moderno. Se de um lado existe uma clara continuidade, de outro a influência judaica sobre o mundo não-judaico no século 20 se dá num nível bem diferente do que se observa no século 19. O século da burguesia liberal tornou-se o século judaico, conforme Yuri Slezkine em seu livro The Jewish Century (O século judaico). A comunidade judaica norte-americana tornou-se, de longe, a maior de toda a Diáspora. Ao contrário do que ocorreria com os outros grupos judaicos em países desenvolvidos, ela se constitui, em sua avassaladora maioria, de judeus pobres oriundos do Leste da Europa, que eram numerosos demais para se ajustarem aos padrões até então determinados pelos judeus alemães assimilados. Além disto, no âmbito cultural, esta comunidade permaneceu marginalizada, excetuando-se, talvez, o campo da jurisprudência. Na Polônia e na Rússia, os judeus viveram um despertar político massivo antes da Revolução de 1917, que exerceu um efeito modernizador sobre a emancipação judaica em seu conjunto, e até mesmo foi responsável pela criação da vertente sionista desta emancipação.        

        A medida da presença judaica no universo da cultura norte-americana na segunda metade do século 20 era inimaginável antes da 1ª Guerra Mundial e mesmo antes da 2ª Guerra Mundial. Isto vale, também, para o numeroso público leitor judaico, ciente de sua identidade, e que influenciou, de maneira significativa, o mercado editorial.         

        A contribuição dos judeus emancipados às sociedades nas quais viviam foi, desde o  início, desproporcionalmente grande. Do ponto de vista cultural, tratava-se de uma contribuição não-específica: estes judeus emancipados queriam, simplesmente, ser italianos, alemães ou ingleses, como todos os outros. E estas sociedades, em seu período liberal – independentemente dos sentimentos anti-semitas, bastante  difundidos – deram as boas-vindas a uma minoria, próspera e culta, que fortaleceu os seus valores políticos, culturais e nacionais. Basta pensarmos no show-business antes da 2ª Guerra Mundial, um universo efetivamente dominado pelos judeus: as operetas e os musicais na Europa e nos Estados Unidos, o teatro e mais tarde o cinema e a música popular, dos dois lados do Atlântico. No século 19, Jacques Offenbach era francês e Strauss era austríaco. Também no século 20, Irving Berlin era  considerado americano e a Hollywood dominada por judeus de sua fase áurea não produziu nada que Zukor, Loew e Mayer não considerassem 100 por cento adequado ao sistema de valores da América branca. E entre os astros da época não se encontra nenhum cujo nome soe estrangeiro aos Estados Unidos.

          Na vida pública italiana, a população judaica representava cerca de 0,1% do total da população, mas exerceu um papel mais significativo do que em qualquer outro país: havia 17 judeus no senado, havia ministros e até generais judeus. Mas era tão difícil distingui-los dos outros italianos que só depois da 2ª Guerra Mundial os historiadores começaram a dar atenção a este fato.

        Na esfera da alta cultura não era diferente. Compositores judeus produziram música alemã e francesa enquanto músicos e virtuoses judeus da Europa do Leste conquistavam as salas de concerto como primeiro sinal de sua emancipação. Os grandes violinistas e pianistas judeus emprestaram brilho e solidez a este repertório. Na época do modernismo, a influência judaica tornou-se cada vez mais autônoma e visível na literatura e nas artes plásticas. É possível que as inovações do modernismo nestas áreas fossem especialmente simpáticas a um grupo que não estava seguro de seu lugar no mundo. Por outro lado, deve-se pensar que a crise social do século 19 também levou a sociedade cristã a um estado parecido com o dos judeus, inseguros acerca de seu lugar no mundo.  

        Mas foi no século 20 que triunfaram as idéias do pai judeu da psicanálise. Um judeu é o personagem central do Ulisses; temas judaicos ocupam lugar de destaque na obra de Thomas Mann, Kafka exerceu enorme influência póstuma sobre o século 20. Tocados pelo significado americano – e talvez global – de A morte de um caixeiro viajante, de Arthur Miller, quase não nos apercebemos de quanto a experiência deste personagem tem de inconfundivelmente judaico. Aliás, quem apontou para esta contradição foi o dramaturgo David Mamet.  

Novos campos profissionais para os judeus 

        No universo das artes plásticas do século 19, o número de artistas destacados que eram judeus (Max Liebermann, Camille Pissarro) parece minúsculo em comparação com a Diáspora cosmopolita do século 20, na qual os grandes artistas judeus estão representados de maneira muito mais numerosa e proeminente. Cerca de 20 por cento dos artistas que faziam parte da grande exposição Berlim-Moscou 1900-1950, por exemplo, são de origem judaica (Modigliani,  Pascin, Marcoussis, Chagall, Soutine, Epstein, Lipchitz, Lissitzky, Zadkine). Alguns deles eram reconhecidamente judeus em sua temática – como Chagall. Num  passado recente, a cultura americanizada dos meios de comunicação de massa levou termos do ídiche para a língua dos jornalistas ingleses. Hoje, a maior parte do  público leitor cristão de língua inglesa compreende, por exemplo, o significado do termo ídiche chutzpá (atrevimento). Há 40 anos nenhum não-judeu empregaria este termo, se é que conhecesse o seu significado. 

“Ciência judaica”  

        No que se refere às ciências, a contribuição judaica aumentou de maneira significativa a partir de 1914, e um sinal claro disto encontra-se nas listas de prêmios Nobel. Ao mesmo tempo, nuances nacionais ou culturais não exercem nenhum papel significativo nas ciências exatas ou biológicas, de maneira que a busca por uma “ciência  judaica” fica restrita às teses dos radicais de direita. É evidente que, no âmbito das ciências humanas, as coisas são totalmente diferentes. Numa época de profundas mudanças na prática e na teoria, os judeus emancipados sentiram-se atraídos, desde o início, pela discussão acerca da natureza, da estrutura e das possíveis  transformações das sociedades.  

        Neste sentido, os seguidores de Saint Simon e de Marx foram os pioneiros. A isto se acrescenta a inclinação judaica a apoiar movimentos que buscavam transformações revolucionárias numa esfera global. Isto se torna evidente nos movimentos comunistas e socialistas inspirados pelas idéias de Marx. Efetivamente, pode-se sustentar a tese de que os judeus do Ocidente, durante a primeira parte do século 19, puderam emancipar-se graças a uma ideologia que, de início, nada tinha a ver com eles, enquanto os judeus da Europa Oriental o fizeram graças a uma ideologia universalista e revolucionária que estava intimamente ligada a  eles. Isto vale até mesmo para o sionismo original, profundamente marcado pelo pensamento marxista, e que foi fundamental para a criação do Estado de Israel.  

        Correspondendo a este desenvolvimento, os judeus do início do século 20 de certas regiões da Europa destacaram-se em disciplinas como a sociologia e sobretudo a psicanálise. O mesmo vale para o clube internacional dos violinistas virtuoses. Nestas e em outras disciplinas em que os judeus contribuíram de maneira significativa, este destaque não pode ser atribuído a quaisquer circunstâncias que as tornassem particularmente atraentes para os judeus. Antes, deve-se pensar na ausência de estruturas rígidas, uma condição indispensável para as inovações. Em seu livro The Hitler Emigres (Os emigrantes de Hitler), de 2002, Daniel Snowman aponta para o fato de que os exilados da Europa Central na Grã-Bretanha contribuíram de maneira bem mais significativa nas áreas novas e de caráter mais interdisciplinar – como a história, a história da arte, a psicologia, a sociologia, a criminologia, a física nuclear e a bioquímica – e nas profissões em rápido desenvolvimento, como o filme, a fotografia, a arquitetura, o rádio e a televisão, do que nas áreas já bem estabelecidas. Einstein não se tornou o rosto mais conhecido das ciências do século 20 porque era judeu, mas porque encarnou, mais do que qualquer outro, uma ciência que, ao longo de um século de constantes rupturas, passou por uma grande revolução.  

        Poder-se-ia perguntar por que em certos países a contribuição judaica à cultura e às ciências no Ocidente foi tão mais significativa do que em outros. Tomemos os prêmios Nobel nas ciências sérias.   Dos 74 prêmios obtidos por ingleses, 11 foram obtidos por judeus, mas só um deles nasceu na Grã-Bretanha. Dos 11 prêmios obtidos por russos desde 1917, seis ou sete foram conquistados por judeus. Deve-se supor que todos eles tenham nascido lá. Antes de 2004, nenhum pesquisador israelense conquistou nenhum prêmio Nobel em ciências, ainda que este país ocupe o primeiro lugar no índice de pesquisas científicas per capita. Este quadro mudou em 2004 – dos dois prêmios, um foi para um pesquisador nascido em Israel e o outro para um colega que emigrara da Hungria. Em comparação a estes números, é surpreendente o fato de que membros da pequena comunidade judaica sul-africana, de origem lituana, e que conta com cerca de 150.000 pessoas, tenham conquistado dois ou três prêmios Nobel desde a independência de Israel, ainda que sempre em outros continentes. Como poderíamos explicar este fenômeno?

        Só nos resta, aqui, especular. Nas ciências, a explicação certamente se encontra no fato de que nas diversas áreas de pesquisa houve um enorme crescimento numérico. Antes de 1913 havia, na Prússia, menos de 2.000 professores  universitários. Na Alemanha como um todo eles eram pouco mais de 4.200. Com exceção de David Ricardo, a surpreendente ausência de judeus entre os economistas importantes de antes da 2ª Guerra Mundial provavelmente pode ser explicada pelo diminuto número de postos acadêmicos nesta área. Ao contrário, os judeus receberam a maior parte dos prêmios Nobel de química antes de 1918 e isto certamente está associado ao fato de que foi nesta área que os especialistas com formação acadêmica primeiramente encontraram empregos em número considerável. Só as três maiores indústrias químicas alemãs criaram cerca de 1.000 empregos deste tipo. Entre os meus sete tios paternos, só um único conseguiu fazer, antes de 1914, uma carreira para a qual era necessário um diploma universitário. Ele era químico.  

Abertura das universidades 

        Talvez estes sejam critérios superficiais, mas não deveríamos negligenciá-los. Não há dúvidas de que a enxurrada de prêmios Nobel obtidos por cientistas norte- americanos a partir de 1970 não teria acontecido sem a abertura das universidades americanas para os judeus a partir de 1948. Mais importante, no meu entender, é a segregação – seja ela do tipo pré-emancipação, seja do tipo nacionalista territorial ou genético. Isto poderia explicar a contribuição um tanto decepcionante de Israel para os prêmios Nobel ante a proporção de sua população judaica. É bem possível que os físicos se sintam estimulados ao viver em meio a não-judeus e ao se dirigirem a um público não-judeu, da mesma maneira que os cineastas. Neste sentido, parece ainda ser muito melhor ter nascido no Brooklin do que em Tel Aviv.  

Israel e a Diáspora

         Por outro lado, um certo grau de tensão nas relações entre judeus e não-judeus parece ter sido produtiva historicamente. Isto se aplica tanto à Alemanha e ao Império Habsburgo quanto aos Estados Unidos no pós-guerra, bem como à Rússia na primeira metade do século 20, à África do Sul e à Argentina. O apoio significativo que os judeus manifestaram a outros grupos que sofriam sob a discriminação oficial – tanto nos Estados Unidos como na África do Sul – certamente é um sintoma deste mal-estar, ainda que isto não se manifeste em todas as comunidades judaicas. Até mesmo em países com a mais ampla tolerância – como a França da III República, o oeste da Áustria sob o Imperador Francisco José ou a Hungria da assimilação maciça – aqueles momentos em que os judeus estavam cientes dos limites da assimilação mostraram-se os mais estimulantes do talento judaico: o momento fin-de-siècle de Proust, que cresceu durante a década de Dreyfus, a era de Schönberg, Mahler, Freud, Schnitzler e Karl Kraus. É possível que os judeus estejam de tal modo integrados à Diáspora de maneira a não mais sentirem este estímulo? Este argumento foi apresentado para tratar da situação dos judeus britânicos do século 19 e eles efetivamente não exerceram um papel significativo na liderança dos movimentos socialistas e social-revolucionários, e sequer estavam representados de maneira importante entre os idealizadores intelectuais destes grupos. Esta circunstância deveria ser comparada com a situação de seus contemporâneos a leste do Reno e ao norte dos Alpes. Porém, faltam-me conhecimentos para responder exaustivamente a esta pergunta. O que era verdadeiro até a época de Hitler e do Holocausto talvez não o seja mais.

        O paradoxo da era pós-45 é que a maior tragédia da história judaica teve duas conseqüências fundamentais. De um lado, uma minoria considerável da comunidade judaica mundial fixou-se num Estado nacional – Israel, que uma vez foi o resultado da emancipação judaica e do desejo judaico, ingressou no mundo do restante da humanidade. Israel reduziu a Diáspora no mundo islâmico de maneira especialmente drástica. Por outro lado, começou em 1945 uma época na qual os judeus da maior parte do mundo encontram uma aceitação quase irrestrita, em que o anti-semitismo e a discriminação que conheci em minha juventude praticamente desapareceram. Ao mesmo tempo, os judeus vêm realizando conquistas culturais e intelectuais nunca vistas. Não há um antecedente histórico para este triunfo do iluminismo na Diáspora depois do Holocausto. Ao mesmo, tempo existem aqueles que desejam manter-se isolados deste momento, na antiga segregação da ultra-ortodoxia religiosa e na nova segregação de um Estado étnicogenético separado. Seu sucesso não seria vantajoso para os judeus. Nem para o resto do mundo.

 

Eric Hobsbawm nasceu em 1917 em
Alexandria e cresceu em Viena. Foi professor de
História em universidades americanas e
inglesas e é um dos mais conhecidos historiadores
de nosso tempo. É presidente do Birkbeck College de Londres.